A antiga Vila de Arapiraca pertencia a Limoeiro de Anadia. Após muitos anos de lutas, tendo à frente Esperidião Rodrigues e o deputado Odilon Auto, a tão sonhada emancipação aconteceu no ano de 1924, com o projeto de lei aprovado na Assembleia Legislativa Estadual, assinado e sancionado pelo governador Fernandes Lima.
Mas antes desses fatos, é preciso falar sobre uma parte, até então desconhecida da história de Arapiraca e do Agreste alagoano.
Sobre Arapiraca, o que está registrado nos livros e recortes de jornais, é que o povoamento da região se fez com o trabalho de seus primeiros moradores brancos. Os livros oficiais, de escritores locais, contam isso.
No entanto, as cartas de liberdade que o professor, escritor e historiador Gilberto Barbosa encontrou no Cartório de Limoeiro de Anadia lançam luz sobre a verdade e demonstram que, assim como em todo o Brasil, Arapiraca e outras cidades do Agreste alagoano também fizeram uso da escravidão para desbravar e se desenvolver.
A própria existência das comunidades quilombolas de Mameluco, Lagoa do Coxo, Poços do Lunga, Passagem do Vigário (atualmente em Taquarana), e as localidades de Carrasco e Pau d‘Arco (atualmente em Arapiraca), também corroboram para o entendimento do uso de trabalho escravo na região.
Uma questão que precisa ser melhor divulgada e debatida. A importância da descoberta de Barbosa é clara. O aprofundamento das pesquisas e uma releitura sobre a história oficial de Arapiraca se faz necessário.
Mercadoria e moeda de troca
Ainda de acordo com o historiador, muito já foi descoberto, mas as pesquisas continuam.
Os escravos negros da região trabalhavam nos serviços domésticos, nas roças, nos engenhos e nos canaviais, na lida do gado e nos engenhos para a fabricação de açúcar e rapadura.
Em termos gerais, o negro era visto como uma mercadoria que deveria gerar outras mercadorias necessárias para a manutenção de seu senhor, e como mercadoria ele era adquirido como tal.
O escravo tratado como animal, comprado e avaliado pelos dentes, pela “canela fina”, que caracterizava não só o escravo trabalhador, mas também o escravo procriador, para, no pensamento de seu senhor, aumentar o “rebanho” de negros da fazenda.
O escritor e intelectual Dirceu Lindoso afirmava que “eles eram produtos mercantis como o açúcar ou o café”. Alguns senhores os usavam como moeda de troca, em negócios com casas e terrenos.
O ofício das escravas não se resumia somente ao trabalho na lida da terra e no seio do lar do seu senhor, cuidando dos trabalhos domésticos, como mucamas, cozinheiras e amas de leite. Como se não bastasse, os senhores aproveitavam dos “trabalhos extras” das suas escravas, deitando-se com estas quando bem queriam.
Foi assim que surgiram os escravos brancos e mestiços. Saciando os seus desejos, o homem branco deixava como herança somente os filhos tidos com as próprias negras para que estas os criassem, na maioria dos casos, sem lhe dar qualquer sustento.
As pesquisas realizadas pelo historiador Gilberto Barbosa, se comparadas a outros locais de Alagoas, a maioria dos donos de escravos de Limoeiro de Anadia se constituía de pessoas com poder aquisitivo pequeno.
Muitos desses senhores somente tinham um, dois ou, no máximo, cinco escravos para os trabalhos domésticos ou de roça.
Contudo, também existiam pessoas abastadas que contavam com grande número de cativos em suas propriedades. É o caso do filho do fundador de Limoeiro, capitão Manoel Francisco da Silva, que em seu inventário consta possuir 27 escravos.
Freguesia e Município de Limoeiro no século 19
Gilberto Barbosa relata que, em Arapiraca, foram encontradas pelo menos duas cartas de alforria, uma datada de janeiro de 1881, na qual José Nunes de Magalhães libertava a sua escrava Josepha, mulata de 27 anos, e a segunda, passada por Manoel André em favor da escrava Josefa, no dia 1º de junho de 1885.
Assim como ocorreu em Arapiraca, em outros recantos da Freguesia Eclesiástica e do município de Limoeiro de Anadia, também havia a contribuição para o sistema escravista, no qual membros das famílias mais tradicionais não dispensavam os trabalhos dos cativos.
Em Coité do Nóia, há o exemplo de Manoel Joaquim da Costa Zow, filho de Anna da Anunciação Silva e do Capitão Basílio Estevão da Costa.
Em 1872, Zow possuía oito escravos, todos nascidos em Alagoas. Sua mãe, quando viúva, possuía um montante de 19 escravos, devidamente transcritos no seu inventário de 22 de maio de 1872.
No sítio Brejo, atualmente em Limoeiro de Anadia, Pedro Vital da Silva, em inventário realizado entre 1861 e 1862, tinha uma relação de 31 escravos.
Gilberto Barbosa diz que boa parte desses escravos, objetos de desejo e símbolos de status social, vinha procedente principalmente de Angola.
Ao desembarcarem no Brasil, os escravos eram separados e direcionados para o mercado, onde eram vendidos e avaliados de acordo com a faixa etária, sexo e também pelo estado de saúde.
Para combater a escravidão e concretizar o sentimento de liberdade na sociedade escravocrata da época, foi primordial o surgimento de movimentos abolicionistas por todo o Brasil. Em Alagoas surgiu a Sociedade Libertadora Alagoana.
Talvez influenciados pelo movimento abolicionista, alguns donos de escravos os libertaram antes mesmo da abolição da escravatura.
Liberdade e dependência
A carta de alforria, que em árabe significa “a liberdade”, transferia o título de propriedade de senhor para escravo. Havia dois tipos de cartas de alforria. As cartas pagas, aquela em que os escravos ou um benfeitor comprava a sua liberdade.
E as cartas gratuitas, quando eram doados para si. Em algumas situações, os senhores faziam questão de propagar que eram simpatizantes do movimento abolicionista, transcrevendo nas cartas que faziam “por amor a causa abolicionista”.
Como falou em reportagem anterior, publicada nesta Tribuna, na edição do último dia 8 deste mês de outubro, diante das pesquisas realizadas, surgiram vários questionamentos sobre a motivação da liberdade antecipada, dentre as quais, destaca algumas, sendo a primeira porque as motivações estariam ligadas à idade dos cativos, enquadrados na Lei do Ventre Livre de 1871 e na Lei dos Sexagenários de 1885.
A segunda questão estaria voltada à simpatia com o movimento abolicionista, e o terceiro ponto aos pouquíssimos casos em que existia um sentimento, digamos, mais humano por parte dos senhores para com seus cativos que os libertavam por “caridade”. Barbosa salienta ainda que o testamento do padre Pedro Vital corrobora com essa versão.
“Declaro que tenho treze escravos de nomes Custódia, Urbano, Lindolfo, Balbino, Izabel, Antônio Vicência, Idalina. (Que) gozarão de suas plenas liberdades como se do ventre livre tivessem nascido, o que faço não só por fazer essa obra pia e de caridade como porque os criei como filhos” (CASTRO NETO, 2007, p.74-75).
Alguns autores alagoanos também citam que havia certa tolerância nos engenhos de Alagoas e que a partir da segunda metade do século 19 tornaram-se raros os casos de castigos.
No entanto, eles citam que tal situação, de certa tolerância, parece confirmar o fato de que havia a necessidade de tratar favoravelmente, com receio de fugas ou rebeliões, tendo em vista que os escravos alagoanos eram conhecidos por revoltas, a exemplo, de Palmares, terra da liberdade.
Com a liberdade conquistada antes da Lei Áurea, os negros, de certa forma, continuaram cativos de seus antigos donos, e agora a escravidão era movida pela gratidão de terem recebido a carta de alforria.
Seria a liberdade antecipada uma atitude premeditada dos senhores com o objetivo de conquistar a gratidão de seus outrora cativos? É bem possível. Com o surgimento da Lei Áurea em 1888, todos os escravos foram libertados. No entanto, eram necessárias outras medidas, como a distribuição de terras, que permitissem a eles exercer, de fato, sua cidadania.
Outro agravante, para o pesquisador Gilberto Barbosa, é que eles não tinham formação escolar e profissional, segundo o recenseamento de 1872, dentre os escravos de Limoeiro nenhum sabia ler ou escrever, ou uma profissão definida.
Para a maioria dos escravos, a simples emancipação não mudou sua condição subalterna nem ajudou a promover sua cidadania ou ascensão social.
Diante disso, mesmo com a liberdade alcançada, muitos ex-escravos da região ficaram na companhia de seus outrora senhores, trabalhando por comida. Dessa forma, infelizmente, não puderam deixar uma herança digna para seus filhos, netos e gerações posteriores progredirem.
No Brasil, o preconceito, o racismo e a pobreza são quase que uma regra para seus descendentes. Eis a história do Brasil, de Arapiraca e do Agreste de Alagoas.
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