No ano de 2018, um casal de cearenses radicados em São Paulo, a advogada Karyne Castro, 39, e o marido, Handerson Castro, 38, sentiram fortes dores no corpo algumas horas depois de comer um peixe que haviam trazido de Fortaleza (CE). Em alguns dias a dor passou, e não havia motivos para desconfiar que a culpa era do jantar.
Quatro dias depois, o casal almoçou outra posta do mesmo peixe,
conhecido como arabaiana ou olho-de-boi.
"A
carne estava ótima, com a aparência perfeita. Veio da peixaria onde sempre
compramos", conta Karyne.
A noite, o casal notou que as dores haviam voltado. Poucas
horas depois, estavam internados na unidade semi-intensiva do Hospital
Israelita Albert Einstein, tomando medicamentos à base de morfina para conter a
dor.
Eles foram diagnosticados com a síndrome de Haff,
popularmente conhecida como "doença do xixi preto". A enfermidade é
rara e provoca dores intensas por todo o corpo e o escurecimento da urina. Ela
é causada por uma toxina presente na carne de peixes e
crustáceos contaminados, mas pouco se sabe sobre como isso acontece.
O que causa
A doença de Haff causa destruição dos músculos, cujas
proteínas passam a circular na corrente sanguínea, o que sobrecarrega os rins
e gera o escurecimento da urina.
"Em
alguns dias a dor vai se dissipando, e a doença se cura sozinha. A principal
preocupação é com a falência dos rins", explica a sanitarista Cristiane
Cardoso, que acompanhou pacientes de um surto de Haff em Salvador. Para
evitar isso, os enfermos devem receber tratamento adequado, que
inclui cuidados com a hidratação.
Usar anti-inflamatórios pode agravar o caso, já que o
medicamento também pode prejudicar as funções renais.
O infectologista Roberto Muniz Júnior, responsável pelo diagnóstico do casal, conta que os sintomas idênticos de duas pessoas da mesma família chamaram a atenção para a síndrome rara.
"É uma
doença negligenciada, esquecida pela comunidade médica", afirma Muniz
Júnior. "O risco maior é de que o médico não entenda a gravidade da dor e
não investigue."
Sem febre
A ausência
de febre, que caracteriza outras doenças como dengue e febre amarela, descartou
os diagnósticos mais comuns. No dia seguinte à internação, os pacientes já
apresentavam alteração na urina. "Era muito escura mesmo, parecia
Coca-Cola", conta Karyne.
A sanitarista Cristiane Cardoso explica que a toxina presente no
peixe é resistente a altas temperaturas, uma vez que há relatos de pacientes
que consumiram o alimento frito. E nem todos os expostos a ela ficam
doentes.
Os especialistas desconfiam que a toxina pode estar presente em
alguma alga da qual os peixes se alimentam, mas não se tem
certeza de qual substância é tão prejudicial.
Amostras de peixes crus de um paciente do surto de Salvador
foram enviadas para testes nos Estados Unidos. O departamento de controle
de alimentos e remédios do país (FDA na sigla em inglês) não encontrou toxinas
ou contaminação de metais pesados.
A família
O caso de São Paulo aconteceu no começo de agosto. O casal já teve alta e faz
acompanhamento semanal para monitorar a recuperação dos rins. As filhas de
Karyne e Handerson, de quatro e seis anos, e a mãe e a irmã de Handerson
comeram o mesmo peixe, mas apenas as crianças não apresentaram sintoma.
Na literatura médica, não há registros de crianças infectadas,
mas os pesquisadores não têm uma explicação para isso. "Como é uma doença muito
rara, não é possível afirmar se as crianças são imunes ou coincidentemente não
estiveram entre os contaminados", afirma a sanitarista.
Os primeiros registros da doença de Haff são de 1924, em países
da antiga União Soviética, e há poucos casos descritos no mundo. No Brasil, o
surto mais recente foi registrado entre os anos de 2016 e 2017 em Salvador,
quando 67 pessoas ficaram doentes.
As secretarias estaduais de Saúde de São Paulo e do Ceará não
têm informações sobre outras ocorrências da doença. Sua notificação não é
compulsória, ou seja, os hospitais não são obrigados a avisar os serviços de
saúde.
por https://www1.folha.uol.com.br/
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