Um menino no interior do Maranhão comemora o 15 de outubro, assim como uma menina gaúcha. O dia do professor é celebrado em todo o Brasil. Sabem esses estudantes quem é a extraordinária heroína brasileira que criou a data? Seus feitos, sua história? Sabem os professores destes estudantes algo sobre ela? Ou será que esta personagem fantástica, mulher e negra, foi invisibilidade?
Antonieta de Barros foi excepcional. Está entre as três primeiras mulheres eleitas no Brasil. A única negra. Foi eleita em 1934 deputada estadual por Santa Catarina, mesmo ano que a médica Carlota Pereira de Queirós foi eleita deputada federal por São Paulo. Sete anos antes, Alzira Soriano havia sido eleita prefeita num pequeno município do Rio Grande do Norte, primeiro estado a permitir disputas femininas.
Expoente
da ideia “anárquica” de que as mulheres deveriam ter direito ao
voto, a bióloga Bertha Lutz trocou inúmeras cartas com Antonieta na
década de 1930. Vale lembrar, Antonieta foi eleita menos de meio século após
a abolição da escravatura e
apenas dois do sufrágio —que deu às mulheres direito ao voto facultativo. Num
país fortemente preconceituoso quanto à classe, cor e gênero tinha orgulho de
sua história.
Nasceu
em Desterro, como era chamada Florianópolis, no dia 11 de julho de 1901. No
registro de batismo, na Cúria Metropolitana, realizado pelo Padre Francisco
Topp, não aparece o nome do pai. A mãe era Catarina Waltrich, escrava liberta.
No imaginário popular, a verdadeira paternidade estaria ligada à família Ramos,
uma das mais tradicionais do Estado.
A
bandeira política de Antonieta era o poder revolucionário e libertador da
educação para todos. O analfabetismo em Santa Catarina, em 1922, época que
começou a lecionar, era de 65%. Isso que o Estado, sobretudo pela presença
alemã, aparecia com um dos índices mais altos de escolarização do país,
seguidos por São Paulo.
Segundo
conta Karla Leonora Dahse Nunes na sua dissertação de mestrado, Catarina teve
três filhos e os sustentava como lavadeira, serviço comum às mulheres negras da
época. Também teve, com a ajuda financeira de Vidal Ramos, uma pequena pensão
para estudantes. Foram esses jovens que ensinaram as letras tardiamente para a
curiosa Antonieta. Alfabetizada, mergulhou por conta própria no universo dos
livros.
Professora
formada, tinha 17 anos quando fundou o curso particular “Antonieta de Barros”,
com o objetivo de combater o analfabetismo de adultos carentes.
Sua crença era que a educação era a única arma capaz de libertar os
desfavorecidos da servidão. Sua fama de excelente profissional, no entanto, fez
com que lecionasse também para a elite nos Colégio Coração de Jesus, Dias Velho
e Catarinense.
Se
existissem barreiras, lá estaria Antonieta para rompê-las.
Sua
defesa acirrada pela educação fez com que ocupasse as páginas dos jornais. Além
de professora, virou cronista. Não havia outra mulher em posição semelhante no
Estado. Em 23 anos de contribuição à imprensa escreveu mais de mil artigos em
oito veículos e criou a revista Vida Ilhoa.
De
seus opositores nos jornais e nas bancadas, ouviu que “mulheres não deveriam
opinar, pois nasceram para servir”, “que a natureza não dá saltos, cada ser
deve conservar-se no seu setor, e a finalidade da mulher é ser mãe e ser rainha
do lar” e que “não seguisse o exemplo de Anita Garibaldi, uma vagabunda”.
Mas
aqueles homens brancos da elite oligárquica e política, não a intimidaram.
Antonieta era forte, mulher de fibra. Não havia quem tivesse argumentos para
calá-la. As calúnias eram rebatidas com intelecto e destreza nos artigos
assinados sob pseudônimo Maria da Ilha. Sua caneta era afrontosa. Escrevia
sobre educação, os desmandos
políticos e a condição feminina. Dizia que as mulheres não deveriam ser
“virgens de ideias”.
Honesta,
enérgica e humana, era respeitada e admirada por seu espírito de justiça. Tinha
voz numa época que as mulheres eram silenciadas. Escreveu dois capítulos da
Constituição catarinense, sobre Educação e Cultura e Funcionalismo, até ser
destituída do cargo pelo golpe de Getúlio Vargas.
Em
1937, publicou o livro Farrapos de Ideias. Os lucros da primeira
edição foram doados para construção de uma escola para abrigar crianças, filhas
de pais internados no leprosário Colônia Santa Tereza. A obra teve outras duas
edições.
Uma
das poucas frustrações da carreira de Antonieta foi não ter cursado o ensino
superior. Seu sonho era a Faculdade de Direito, exclusiva para homens. Mas na
política ela brilhou, foi eleita novamente em 1947. Desde sua vitória, apenas
outras 15 mulheres ocuparam uma cadeira na Assembleia de Santa Catarina. Nenhuma
negra. Antonieta ainda não teve herdeira de luta.
A primeira grande lei educacional do Brasil foi sancionada por dom Pedro I em 15 de outubro em 1827, um marco para a educação brasileira. A data era comemorada informalmente, mas foi um projeto de Antonieta a lei que criou o Dia do Professor e o feriado escolar nessa data (Lei Nº 145, de 12 de outubro de 1948), em Santa Catarina. A data seria oficializada no país inteiro somente 20 anos depois, em outubro de 1963, pelo presidente da República, João Goulart.
Outras leis
importantes foram concessões de bolsas de cursos superiores para alunos
carentes e concursos para o magistério, para elevar o ensino público e evitar
apadrinhamentos.
Antonieta
deveria ser uma espécie de Frida Kahlo brasileira. Foi feminista
numa sociedade conservadora, negra e mulher numa terra de oligarquias, mestre
de centenas de jovens da elite branca que jamais deixaram de reverenciar sua
cultura e personalidade. E é a prova que não são apenas as manifestações de
raiz açoriana que sustentam a cultura de Florianópolis.
“A
grandeza da vida, a magnitude da vida, gira em torno da educação”, escreveu em
seu livro. Seu nome deveria ser conhecido por cada criança que homenageia seus
professores no dia 15 de outubro. Por cada mulher que exerce seu direito ao
voto e disputa vagas nas eleições. Por fim, por cada brasileiro que sai às ruas
indignado com os preconceitos de cor, classe e gênero.
213 anos de escravidão: a herança de Antonieta
Para
percebermos como Antonieta foi célebre basta entender um pouco do contexto
histórico de Santa Catarina, o Estado com maior população dita branca do país.
Da primeira expedição de Martim Afonso de Souza, em 1531, até o último navio negreiro que aportou
no Rio de Janeiro, em 1856, quatro milhões de africanos foram
sequestrados para se tornarem escravos em solo brasileiro.
Desterro
(Florianópolis), território Guarani, foi povoada em 1675, quando o bandeirante
Francisco Dias Velho, vindo da Capitania de São Vicente (São Paulo), se apossou
das terras com sua família e uma comitiva de 400 pessoas, a maioria, indígenas
e negros escravizados.
Há
inegáveis traços africanos na construção da identidade catarinense, mas eles
são apagados. A presença negra não é lembrada pela história popular, embora, no
século 19, 20% da população de Desterro tenha sido negra. No mesmo período, no
Planalto Serrano, de onde veio Catarina, mãe de Antonieta de Barros, chegava a
50%, de acordo com o livro Negro em Terra de Branco, escrito por
Joana Maria Pedro, Ligia de Oliveira Czesnat, Luiz Felipe Falcão, Orivalda Lima
e Silva, Paulino Francisco de Jesus Cardoso e Rosângela Miranda Cherem.
Segundo
o livro, a economia da província não se baseava em latifúndios, mas a presença
negra não era, de modo algum, inexpressiva. O negro escravizado desempenhava
funções na pesca de peixes e baleias. Trabalhava com seus senhores nas
plantações de arroz e mandioca. Exercia ofícios de sapateiros, pedreiros,
marceneiros, ferreiros e soldados. Servia para os cuidados domésticos da elite
burocrática e militar. E ainda como lava-pés e cadeirinhas.
A resistência à escravidão é
bastante documentada do começo a metade do século 19. Da criação de grupos
cívicos à fundação de irmandade como a Nossa Senhora do Rosário, que coletava
fundos para compras de alforrias. A opressão não era pouca. Negros não podiam
se aglomerar, “vadiar” pelas ruas, nem cantar e dançar sob pena de 50
chibatadas.
No
livro Navegadores e Exploradores de Santa Catarina, Roberto Wildner
traz a figura do naturalista Langsdorff. É do cientista o relato cruel sobre o
comércio em Desterro, em 1803: “A quantidade de escravos negros de ambos os
sexos que se veem aqui é estranha aos olhos desacostumados de um europeu
qualquer. Despertou-me revolta especial quando vim pela primeira vez a Nossa Senhora
do Desterro e vi um grande número destas criaturas abandonadas, nuas, deitadas
frente às portas de ruas laterais e oferecidas à venda. Apenas as regiões
púbias estavam cobertas com um velho pano rasgado que após alguns dias eram
substituídos por um grosseiro tecido azulado”.
Em
Florianópolis, a primeira vez que esse tema apareceu no mundo acadêmico foi em
1960, na pesquisa dos jovens sociólogos, à época, Fernando Henrique Cardoso e
Otavio Ianni, reeditada como Negros em Florianópolis. Na obra,
ficam claro os preconceitos de cor e o quanto Santa Catarina se esforçou para
ser a “Europa dentro do Brasil”.
Não
foi o espírito humanitário que engajou as campanhas abolicionistas.
Foi a esperança no branqueamento da população que
ansiava pela modernidade econômica. O negro não cabia nesse plano, pois era
visto como atraso, um impeditivo aos novos tempos. O resultado da repulsa pelos
negros foi que os abolicionistas não lutaram por retratação histórica, nem se
preocuparam com o destino de milhares de pessoas após a abolição.
Desterro
ansiava pela chegada dos europeus, que deixariam a população de pele e olhos
claros e teriam vocação para o trabalho e o progresso. Tinha pressa. Foi a
terceira capital da abolição. Jornais da época tinham como principais produtos
de beleza, o “Cremme Oriza, para branquear, abrandar e refrescar a pele” e o
“Tônico Oriental para cabelos finos como seda”.
No
entanto, nos portos aos quais chegaram os imigrantes, primeiro os açorianos,
depois alemães e italianos, eram os negros que trabalhavam de estivadores. Já
no início do século XX, o início da modernização arquitetônica modificou a
imagem de Florianópolis. Os casebres dos negros, situados no centro da cidade,
foram demolidos. O de Antonieta permaneceu em pé por interferência da família
Ramos.
Criou-se,
então, a lei das tábuas. O governo deu tábuas para os negros com a condição que
construíssem suas casas longe da vista. Aí começou a ocupação dos morros.
Surgiram as comunidades do Morro da Caixa D'Água, da Coloninha e do Continente.
Em seguida, nasceram clubes como União Recreativa 25 de Dezembro, Brinca Quem
Pode, Flor da Mocidade, Flor do Abacate, Tiramão.
Houve
o florescimento de uma intelectualidade negra, Ildefonso Juvenal da Silva,
Trajano Margarida, João Rosa Júnior, Amália Efigênia da Silva, Maria da Rosa
Lapa, Demerval Cordeiro dos Santos, Maria Carlita, Dorvalina Machado Coelho e
Maria Venânia —professores, jornalistas, poetas, compositores, músicos,
oradores da geração de Antonieta—, costumeiramente desdenhados pela elite
branca.
Antonieta
era a exceção. Era aceita pelos brancos. Mas, vale ressaltar que, de 1929 a
1951, escreveu em oito jornais sem nunca ter falado de sua cor. O que não foi
impeditivo para ouvir de um colega de bancada parlamentar, o médico Oswaldo
Rodrigues Cabral, que ela escrevia “intriga barata de senzala”.
Aline
Torres é jornalista, escritora e criadora
da Construtores de Memórias,
uma agência de narrativas, especializada em transformar lembranças afetivas em
livros, reportagens e documentários.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Os comentários publicados nas matérias não representam a opinião do Blog do Poeta, sendo a responsabilidade inteiramente de seus autores."